Vírus da chikungunya provocou sete surtos no Brasil em 10 anos

por Antônio Luiz Moreira Bezerra publicado 13/11/2023 08h00, última modificação 10/11/2023 12h40
Agente causador da enfermidade já foi identificado em 60% dos municípios

Aparentemente, o vírus da febre chikungunya chegou ao Brasil para ficar e transformou o país no recordista das Américas em número total de casos. Com a primeira ocorrência de origem nacional identificada em 2014, ele se espalhou rapidamente por todos os estados e não parou de causar problemas. Nesses 10 anos, houve ao menos sete grandes surtos – um por ano de 2016 para cá –, com quase 254 mil infecções confirmadas em laboratório e 1,2 milhão de casos suspeitos, além de cerca de mil mortes. Dois estudos recentes estão ajudando a compreender melhor o padrão de ocorrência da enfermidade e de circulação do vírus, que vem acumulando alterações genéticas capazes de aumentar seu poder de replicação no organismo humano.


No primeiro trabalho, publicado em abril na revista The Lancet Microbe, o virologista brasileiro William Marciel de Souza, da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, e colaboradores no Brasil e no exterior analisaram as informações dos 253.545 casos de chikungunya registrados em 3.316 municípios brasileiros de março de 2013 a junho de 2022. Todos haviam sido confirmados por testes laboratoriais para eliminar a possibilidade de infecção por dengue, que produz alguns sintomas semelhantes aos da chikungunya. Ao avaliar a distribuição dos casos ao longo do tempo, os pesquisadores identificaram sete grandes ondas (surtos). Em cada uma delas, os picos ocorreram entre fevereiro e junho, os meses mais quentes e chuvosos do ano em parte do país, que favorecem a multiplicação dos vetores. O vírus é transmitido para os seres humanos pela picada de fêmeas dos mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus, encontrados em praticamente todo o território nacional.

 

Em seguida, Souza e seus colaboradores confrontaram a informação temporal dos casos com sua distribuição geográfica e identificaram um novo padrão. Os locais atingidos por um surto em determinado ano eram poupados nos anos seguintes. Esse padrão de ocorrência fortalece a ideia de que o vírus da chikungunya leva ao desenvolvimento de uma imunidade duradoura, algo já sugerido anteriormente por estudos com animais de laboratório e testes com sangue de pessoas de outros países em que o vírus circula. Se essa forma de imunidade de fato ocorrer, um indivíduo que se cura da infecção ficaria por anos, ou até por toda a vida, protegido da infecção pelo vírus ou, ao menos, da possibilidade de desenvolver a doença.

 

O padrão encontrado pelo grupo também indica que o vírus se dissemina em pequenos bolsões, geralmente restritos a alguns municípios, o que torna possível uma nova ocorrência de surtos em estados afetados anteriormente. Isso ficou claro quando foram analisados os dados de Tocantins, Pernambuco e Ceará, onde houve surtos repetidos no intervalo de alguns anos. Nesses estados, os lugares com elevado número de casos em uma onda apresentavam um número pequeno na seguinte, indicando a dispersão em bolsões e, nas áreas em que já haviam ocorrido surtos, a existência de algum nível de proteção imunológica contra a doença ou a transmissão. Isso se mostrou verdadeiro até mesmo no Ceará, onde ocorreram 30% de todos os casos brasileiros.

 

“Nas duas primeiras ondas epidemiológicas, o vírus circulou muito no norte do Ceará; na última, atingiu os municípios no sul do estado”, conta o virologista José Luiz Proença Módena, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos coordenadores do estudo ao lado da médica Ester Sabino, da Universidade de São Paulo (USP), do biomédico português Nuno Faria, do Imperial College, em Londres, e do imunologista norte-americano Scott Weaver, da Universidade do Texas. O trabalho contou com financiamento da FAPESP, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e de fontes internacionais.

 

Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

 

Se por um lado as populações dos municípios com grande circulação aparentemente se tornam protegidas; por outro, as menos expostas continuam suscetíveis à infecção. Isso torna boa parte do país um terreno fértil para a disseminação do vírus, uma vez que em 40% dos municípios brasileiros ainda não houve surtos de chikungunya, inclusive em áreas densamente povoadas da região Sudeste. “Apesar de termos identificado um certo padrão de ocorrência dos casos, ainda não conseguimos prever onde ocorrerá o próximo surto”, diz o virologista da Unicamp.

 

Investigando em detalhes os dados do Ceará, onde houve 77.418 casos desde 2013, os pesquisadores notaram também que o vírus infectou com mais frequência as mulheres adultas, além de crianças e idosos de ambos os sexos. Essas características sugerem que a transmissão ocorra em ambiente domiciliar, uma vez que essas pessoas, em geral, passam mais tempo em casa. Outro dado que emergiu dessa avaliação foi a taxa de mortalidade. Lá, o vírus causou a morte de 1,3 indivíduo em cada mil casos, taxa semelhante à da dengue (1,1 morte por mil). “Apesar de não haver reinfecção como na dengue, a chikungunya também mata”, lembra Souza, um dos autores principais do estudo.

 

O segundo artigo, publicado em julho na revista Nature Communications e financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, completa o cenário da febre chikungunya no Brasil ao revelar algumas características genéticas do vírus atualmente em circulação. No trabalho, equipes de mais de 30 instituições brasileiras sequenciaram o genoma de 422 amostras do vírus obtidas de pessoas infectadas em 2021 e 2022, quando houve 312 mil casos suspeitos no país, e confrontaram as informações com as de outros 1.565 genomas de surtos anteriores ocorridos no Brasil e no exterior.

 

Todos os casos nacionais recentes foram provocados pelo vírus da linhagem Leste-Central-Sul-Africana (Ecsa), associada a mortes tanto em pessoas com a saúde debilitada por outras doenças quanto em indivíduos saudáveis. Ela chegou ao Brasil, mais especificamente à Bahia, por volta de 2014, no mesmo período em que uma segunda variedade, de origem asiática, foi identificada no Amapá, como indicou estudo de pesquisadores do Instituto Evandro Chagas (IEC), no Pará, publicado em 2015 na revista BMC Medicine. À medida que se replicava e infectava insetos e seres humanos, o vírus da linhagem Ecsa lentamente acumulou alterações em seu genoma (mutações) que hoje permitem separá-lo em dois subgrupos: o clado I, disseminado pelas regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul; e o clado II, encontrado majoritariamente no Nordeste.

 

Embora a entrada da Ecsa no país tenha ocorrido no Nordeste, as variedades hoje em circulação são derivadas de vírus que emergiram na região Sudeste – provavelmente no Rio de Janeiro – no início de 2018 e que, por meio do trânsito de pessoas entre as duas regiões, foram depois reintroduzidos no Nordeste. De lá, a linhagem Ecsa se disseminou para outras regiões do país e alcançou o Paraguai.

 

Cópias do vírus da chikungunya, vistas ao microscópio eletrônico, que causa inflamação e dores intensas nas articulaçõesCynthia Goldsmith / CDC

Algumas mutações chamam a atenção dos pesquisadores por sugerirem que o vírus pode estar se tornando mais adaptado ao organismo dos vetores, além de ser capaz de escapar da primeira linha de defesa do sistema imunológico – algo que ainda precisa ser confirmado por experimentos em laboratório. “Vimos alterações genéticas que, em outros vírus, já foram associadas ao aumento da capacidade de replicação e de adaptação ao hospedeiro”, conta o virologista Luiz Alcântara, pesquisador do Instituto René Rachou, unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Minas Gerais, e um dos autores principais do estudo da Nature Communications, ao lado da virologista Marta Giovanetti e do biólogo Joilson Xavier.

 

“Os dois trabalhos sugerem que o vírus está cada vez mais adaptado às condições encontradas no país, o que pode levar a surtos maiores”, comenta o virologista Maurício Nogueira, da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp), que não participou dos trabalhos. “Isso pode se tornar um problema grave na região Sudeste, a mais populosa do país, onde o número de casos até agora foi pequeno e a população continua suscetível ao vírus.”

 

Dados de 2023 do Ministério da Saúde indicam que uma oitava onda de chikungunya parece estar em curso. Até o final de agosto haviam sido registrados 142,5 mil potenciais casos da infecção no país, sendo 60% deles em Minas Gerais, que ainda não havia experimentado um grande surto. Em São Paulo, o número de casos ainda é baixo (cerca de 3 mil), mas o total de mortes chegou a 12, quase o dobro do registrado em 2021, quando houve 18,6 mil casos prováveis.

 

O que já é preocupante pode se agravar em consequência das mudanças climáticas. Estudos sugerem que o aumento da temperatura média do planeta pode gerar as condições ideais para os mosquitos transmitirem o vírus da chikungunya por mais meses no ano e em áreas onde antes o clima não era favorável. “Como faltam medidas que controlem o mosquito, o que freia a transmissão é o inverno, que no Norte e no Nordeste é muito ameno”, comenta o virologista Pedro Vasconcelos, do IEC.

 

Identificada pela primeira vez em 1952 na Tanzânia, a infecção pelo vírus da chikungunya, expressão da língua kimakonde que significa “aquele que se dobra”, provoca febre alta e dores intensas e inchaço nas articulações, além de sintomas semelhantes aos da dengue e da zika, como febre e manchas vermelhas pelo corpo. Até o momento, não há medicamento específico para combater o vírus e o tratamento consiste em administrar compostos para reduzir a febre e aliviar as dores.

 

Uma promessa para os próximos anos é uma formulação candidata a vacina, que se encontra em fase final de teste em seres humanos. Desenvolvido pela empresa de biotecnologia francesa Valneva, o potencial imunizante, conhecido apenas pela sigla VLA 1533, usa vírus vivo atenuado para estimular a resposta do sistema imunológico. Resultados iniciais de um ensaio clínico de fase 3, publicados em junho deste ano na revista The Lancet, indicam que o composto é seguro e imunogênico. A administração de uma única dose foi suficiente para gerar anticorpos neutralizantes em 98% das pessoas. No Brasil, o Instituto Butantan atualmente avalia a eficácia dessa formulação em 750 adolescentes de 9 estados. Por ora, no entanto, a forma mais eficiente de evitar surtos é combater o mosquito.

 

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Fonte: Agência de Pesquisa Fapesp

Imagem: Muhammad Mahdi Karim / Wikimedia Commons

Edição: Site TV Assembleia