Violência obstétrica: o que é e como prevenir
Segundo pesquisa, apenas metade das mulheres tem um parto de acordo com as boas práticas obstétricas. Entenda o que pode ser feito para mudar esse cenário
O tema violência obstétrica ganhou os holofotes recentemente, depois que a influenciadora digital Shantal Verdelho teve um áudio sobre seu parto vazado nas redes sociais. Nele, a mulher relata uma série de abusos cometidos pelo médico Renato Kalil, como xingamentos e tentativa de realização da episiotomia - procedimento cirúrgico que consiste em um corte no períneo, entre o ânus e a vagina.
Entre especialistas, no entanto, a conversa já é antiga. Segundo dados da pesquisa Nascer no Brasil, coordenada pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-Fiocruz), apenas metade das mulheres dá à luz de acordo com as boas práticas obstétricas.
Ainda se constatou que a chance de parir sem intervenções médicas no Brasil é de apenas 5%. Esses dados foram tirados de entrevistas com 23 940 puérperas, no biênio 2011/2012.
Os números assustam, já que o parto é um ato biológico, feito para dar certo, e a interferência médica deve ser a menor possível.
Mas o que configura, de fato, esse tipo de agressão e como a mulher pode se proteger?
Afinal, o que é a violência obstétrica?
Atos que causem dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher no período de gestação e no pós-parto estão dentro desse espectro, segundo documento divulgado pela Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras.
Um tratamento desrespeitoso também entra nessa lista. E ele pode vir de qualquer outro profissional envolvido no parto, não só por parte do obstetra.
"A violência obstétrica pode ser física, psicológica ou verbal, e também inclui negligência, discriminação ou condutas excessivas ou não recomendadas, muitas vezes prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas recentes e atualizadas", descreve a médica ginecologista e obstetra Anna Beatriz Herief, da Casa Pitanga, no Rio de Janeiro.
Dentro disso, a especialista ressalta que é primordial ter a consciência de que essa situação não é caracterizada somente por uma agressão clara ou absurda, como bater ou xingar. Ela pode ser bastante sutil, inclusive.
"Essas práticas submetem mulheres a protocolos e rotinas rígidas que são muitas vezes desnecessários, desrespeitam seus corpos e seus ritmos naturais, impedindo-as de exercer seu protagonismo", resume Herief.
O ginecologista e obstreta Paulo Noronha, do Espaço Mãe, em São Paulo, entende ainda que uma agressão pode ser considerada "tudo aquilo que acontece no corpo de uma pessoa grávida sem o consentimento dela, seja no parto normal ou na cesárea".
"E isso só ocorre porque falamos de corpos femininos, independentemente do gênero com o qual a pessoa se identifica, pois a medicina ainda é muito machista", pontua o médico.
O parto em trajetória invertida
As mulheres nasceram com o dom de parir, algo que todo médico concorda. Trata-se de um processo que tende a acontecer naturalmente. Mas é fato que, em alguns casos, há riscos de complicações. Nesses cenários, ainda bem, dá para contar com os modernos recursos da medicina, como a cesárea.
Ocorre que, nas últimas décadas, essa linha de raciocínio se inverteu, e as intervenções cirúrgicas passaram a ser regra, e não a exceção. "O parto começou a ser medicalizado, centrado no médico e no ambiente hospitalar", resume Herief.
Só que, quando escolhida sem prescrição adequada, a própria cesárea pode ser considerada uma violência obstétrica. Agora, perceba: o Brasil está em segundo lugar no ranking mundial de cesarianas, com 55% do total de partos sendo feitos de forma cirúrgica. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), esse índice não deveria passar de 15%.
"As taxas de cesárea são muito altas, o que mostra que somos retógrados. Além dessas técnicas desnecessárias durante o parto, a comunicação no consultório com os pais ainda é violenta", avalia o obstetra Wagner Hernandez, de São Paulo.
"Mas as mulheres passaram a ter mais informação e notaram que havia algo de errado nessa história", analisa Herief.
Parto humanizado como meta
Para a obstetra da Casa Pitanga, toda mulher deveria ter acesso a um parto humanizado. Ele é baseado em três premissas básicas: respeito à fisiologia do parto, base em evidências científicas e protagonismo da mulher. Ou seja, não faz sentido encará-lo como moda.
"Esqueça a ideia de que parto humanizado precisa de banheira, luzinhas no teto, música ou quaisquer outros elementos que você tenha visto em lindos vídeos produzidos. O parto pode até contemplar tudo isso, mas o que fará dele verdadeiramente humanizado é ter essa base firme, verdadeira e respeitosa", crava Herief.
Quando há sinais de complicações e necessidade de intervenções, também existe um jeito certo de realizá-las.
"A média de duração de um trabalho de parto é de 12 horas", conta Daniela Nogueira, ginecologista e obstetra da Clínica First e do Hospital Municipal Dr. Fernando Pires da Rocha, em São Paulo. "Ao chegar em dez centimetros de dilatação, esperamos até duas horas e, aí, se o bebê não nascer, é preciso intervir de alguma maneira", explica.
Mas isso, segundo Nogueira, deve ser feito a partir de conversas com a gestante. Estimulá-la, usando sempre palavras positivas, também é essencial.
Para Herief, nenhuma mulher vai questionar uma intervenção médica realmente imprescindível e conduzida de forma respeitosa, como uma cesariana.
"Agora, ela pode, sim, recusar certos procedimentos, como a episiotomia, que é uma mutilação perineal sem a menor evidência de necessidade, ou a manobra de Kristeller, que é absurda", defende. Essa manobra, só para constar, envolve aplicar uma forte pressão externa (com mãos, punhos e antebraço) na parte superior do útero da grávida, na tentativa de forçar a saída do bebê.
A prevenção começa na consulta
Segundo Noronha, o ponto de partida para a gestante garantir seu protagonismo e se blindar contra a violência obstétrica é ter sua voz ouvida.
"Não é preciso ter medo de questionar o médico. Ele não é detentor de toda a verdade. Quando a mulher pergunta, consegue perceber o que quer e o que não deseja na gestação", declara.
Fora isso, fica mais fácil entender, por exemplo, o que pode acontecer durante o parto, quando intervenções são realmente necessárias e quais as indicações de uma cesariana. Mas, de acordo com o médico, esse diálogo sincero e baseado em ciência está em falta nos consultórios.
Aliás, se os encontros com o médico vão na contramão, trazendo desconforto, é bom mudar de rumo. Ouvir piadas e grosserias é um sinal que não deve ser ignorado. E não é preciso temer a troca de profissional. "A relação médico-paciente não pode ser abusiva", afirma Noronha.
Como a mulher está em uma situação mais vulnerável, contar com um acompanhante pode ajudar a detectar situações suspeitas.
Plano de parto: mais um aliado
"Nele, a mulher basicamente desenha como deseja seu parto. No fim das contas, é um documento que ela usa para se proteger da violência obstétrica. Embora não funcione como documento jurídico, ele deixa a gestante menos suscetível às decisões da equipe médica", descreve Herief.
Para elaborá-lo, dá para se basear nas conversas tidas com o médico ao longo da gestação. Mas também há alguns modelos prontos que podem ser encontrados online.
Troca de experiências com outras gestantes nas redes sociais, busca por livros e rodas de conversas são outros recursos que abastecem a mulher de informações e a deixam mais preparada para a hora do parto.
Ocorrências que podem configurar violência obstétrica
Veja alguns exemplos:
+ Exigência de jejum ou restrição da dieta na hora do parto
É importante que, durante o trabalho de parto, a gestante esteja forte e tenha energia. A recomendação é que faça uma dieta leve.
"Há risco de vômito durante o parto, mas, em momento algum, ela precisa ficar com o estômago totalmente vazio. Por isso, não faz sentido deixá-la sem comer", diz Luciano Curuci, ginecologista e presidente do Colégio Médico de Acupuntura do Estado de São Paulo (CMAeSP).
Segundo o obstetra Wagner Hernandez, de São Paulo, o que pode ser combinado é o jejum para cesáreas eletivas (aquelas feitas com hora marcada), considerando que a gestante permanecerá deitada de barriga para cima.
+ Uso de ocitocina sem indicação médica
Esse hormônio sintético é conhecido por estimular as contrações, mas não deve ser aplicado de forma rotineira. Ainda assim, foi utilizado em 36% dos partos entre 2011 e 2012, segundo dados da pesquisa Nascer no Brasil.
"O médico acompanha a evolução do parto com base em vários detalhes, como dilatação, altura da posição fetal e contagem de contrações. Se houver uma estagnação nesses índices, o uso da ocitocina pode ser um caminho", ensina Curuci.
+ Realização da episiotomia
É um procedimento cirúrgico que consiste em uma incisão no períneo para ampliar o canal vaginal e, assim, acelerar a saída do bebê. É um recurso agressivo e sujeito a várias complicações. Tanto o Ministério da Saúde como a Organização Mundial da Saúde pedem para que ele seja evitado.
A episiotomia só deveria ser colocada em prática em situações extremas — quando, por exemplo, o feto corre risco de vida.
Infelizmente, porém, a realidade é outra: naquele levantamento da Fiocruz, 54% das brasileiras citaram ter passado por essa experiência em seus partos.
+ Obrigar a mulher a ficar na posição de litotomia (ou ginecológica)
É aquela que a gente costuma ver em filmes: a grávida fica deitada com as pernas erguidas, flexionadas e apoiadas em um suporte metálico (conhecido como perneira).
Noronha explica que há algumas circunstâncias em que essa posição até pode ser solicitada, como após a aplicação de anestesia. "Mas o ideal é garantir a movimentação livre da mãe", avisa.
A cada passo, ela vai buscando um jeito mais confortável de se posicionar, sempre acompanhada e monitorada de perto pela equipe.
+ Fazer a aminiotomia
É o ato de romper a bolsa amniótica com a ajuda de uma ferramenta médica. Existem indicações específicas e o momento certo para recorrer a essa técnica, caso ela seja extremamente inevitável.
"É mais saudável que a bolsa se rompa naturalmente, porque o líquido amniótico protege o bebê. Quando isso acontece antes do esperado, seja de forma espontânea ou forçada, há risco de infecção bacteriana", informa Curuci.
+ Utilização do fórceps
Semelhante a uma colher, esse instrumento é usado para apreender a cabeça da criança e tirá-la do canal de parto.
"Ele pode ser empregado em partos muito prolongados e que começam a ser perigosos para a vida do bebê, com risco de hipóxia cerebral [falta de oxigenação no cérebro]", observa Curuci.
Como se vê, não deve, portanto, ser uma prática corriqueira. É essencial que exista uma indicação clara de benefício.
+ Leia também: Violência obstétrica: a violação dos direitos reprodutivos das mulheres
Outros procedimentos condenáveis
- Tricotomia: não há necessidade alguma de se incentivar a depilação dos pelos pubianos antes do parto
- Enemas: a lavagem intestinal já serviu para evitar evacuação na hora do parto, que é um movimento natural do processo
- Toques vaginais sem consentimento em consultas ou no dia do parto
- Negar anestésico para mães com dor
- Negar a presença de acompanhante durante todo o processo — isso é, inclusive, garantido por uma lei federal
- Falta de privacidade durante o parto
- Violência física ou verbal, com ameaças, gritos, piadas e tapas
- Omissão de informações, desconsideração das opiniões padrões e valores culturais da mulher e parturientes e divulgação pública de informações que possam infantilizá-la ou prejudicá-la
- Impedir o contato pele a pele da mãe com o bebê e a amamentação na primeira hora de vida (caso seja um nascimento sem intercorrências) e/ou separá-los por protocolo
- "Ponto do marido": procedimento em que é dado um ponto na vagina para deixá-la mais fechada após o parto
Com informações Saúde Abril
Imagem: Gettty Images