Superar o analfabetismo segue como meta inalcançada do PNE
Após mais de 20 anos como meta de duas edições do Plano Nacional de Educação, a superação do analfabetismo é uma barreira ainda não transposta, incompatível com a nona maior economia do mundo. São 11,4 milhões de brasileiros analfabetos — o equivalente à população do município de São Paulo ou de um país como a Bélgica — cerceados em sua liberdade e dignidade por não saberem ler e escrever. Os dados do Censo Demográfico de 2022 apontam desigualdades que permeiam esse grupo, com recortes etário, regional, econômico e racial bem pronunciados.
Apesar de o número ser bem menor do que na década de 1940 (quando a taxa de analfabetos na população acima de 15 anos chegava a 56%) e ter caído de 9,6%, em 2010, para 7%, em 2022, o analfabetismo continua sendo um sério problema estrutural no país. O Estado — por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA) —, universidades públicas e privadas e ações comunitárias tentam atacar o problema, que ainda parece longe de ser superado.
Em entrevista à Agência Senado, a secretária de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi) do Ministério da Educação, Zara Figueiredo, diz que, quanto à taxa de não alfabetizados, “não estamos regredindo, mas não temos conseguido melhorar esse dado”.
— Quando se pega a taxa de 1940, nós melhoramos, com redução significativa. Mas numa sociedade da informação, numa sociedade tecnológica, numa sociedade do conhecimento, você conviver com 11 milhões de pessoas não alfabetizadas é inaceitável. Porque isso tem efeito sobre a economia, sobre a democracia, sobre a cidadania. Nos últimos anos, nós não tivemos uma redução significativa desses indicadores de analfabetismo — afirma Zara.
Dos 11 milhões de não alfabetizados, pouco mais de 1 milhão tem entre 15 e 39 anos.
— Imagina hoje o que é para pessoas jovens, que estão no mercado de trabalho ou deveriam estar, não ler ou escrever. O WhatsApp, só usam por meio de áudio. Elas precisam de ajuda para usar o caixa automático, elas criam estratégias principalmente para saber qual ônibus pegar, porque têm vergonha de não serem alfabetizadas. Então, esse é um dado sério — diz a gestora.
Às vésperas de perder a vigência e com a maioria das metas não cumpridas, o PNE 2014-2024, que finda neste mês de junho (com possibilidade de ser prorrogado caso seja aprovado o PL 5.665/2023, recém-encaminhado à Câmara pelo Senado), tem como meta 9 "erradicar o analfabetismo absoluto” e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional (quando a pessoa sabe ler ou escrever, mas não consegue compreender textos simples ou fazer operações matemáticas). Também prevista na edição 2001-2010 do PNE, a superação do analfabetismo inevitavelmente continuará a ser meta a perseguir no próximo plano, que o governo federal deve encaminhar ao Congresso em breve.
Professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, Soraya Maria Romano Pacífico é categórica em afirmar que não dá mais para pensar a alfabetização estritamente como uma questão pedagógica ou linguística.
— É uma questão sócio-histórica e ideológica, porque a gente não tem uma divisão social de saber, e ela não é a mesma para todos. Até hoje não se conseguiu pensar que a educação é a base de uma sociedade. Não se colocou a educação como prioridade. Ela está no discurso, aparece nos documentos, mas fica lá. Não é colocada em prática — diz a professora.
Não por acaso, a Comissão de Educação e Cultura (CE) do Senado, presidida pelo senador Flávio Arns (PSB-PR), acaba de aprovar a criação de uma subcomissão permanente para monitorar as políticas da EJA, voltada àqueles que não conseguiram o diploma do ensino fundamental ou médio na faixa etária correspondente. A CE também instalou neste ano a Subcomissão Permanente da Alfabetização na Idade Certa.
Eleito presidente do colegiado da Alfabetização na Idade Certa, o senador Cid Gomes (PSB-CE), representante de um dos estados que têm os melhores índices educacionais, definiu como plano de trabalho fortalecer o regime de colaboração com foco na alfabetização.
— É fundamental envolver prefeituras, estados e governo federal, e nós temos um ambiente propício, nunca tivemos um ambiente tão propício para isso como agora — avalia o senador.
O plano de trabalho prevê ainda, entre outras ações, engajar o Senado na agenda da alfabetização das crianças e propor projetos de lei que visem ao fortalecimento das políticas públicas com esse fim.
Para a senadora Janaína Farias (PT-CE), que propôs a subcomissão permanente para acompanhar as políticas da EJA, há dois grandes desafios: de um lado, superar o analfabetismo; de outro, qualificar a educação de jovens e adultos, aumentando os anos de escolaridade do público-alvo, hoje estimado em 68 milhões de pessoas que não concluíram a educação básica.
“A alfabetização não é apenas um conhecimento fundamental para a comunicação e a compreensão do mundo; é também um pilar indispensável para a inclusão social e a cidadania plena. O acesso à educação e ao conhecimento possibilita a inserção no mercado de trabalho, o exercício dos direitos civis e a participação ativa na sociedade. Portanto, o combate ao analfabetismo entre jovens, adultos e idosos é uma tarefa essencial para o desenvolvimento social e econômico do Brasil”, justifica a senadora.
O analfabetismo atinge a população brasileira de forma desigual. Ele é maior entre os mais velhos — a taxa entre as pessoas idosas acima de 65 anos chega a 20,3%, de acordo com o Censo Demográfico 2022: Alfabetização. Mas o percentual quase caiu à metade, se comparado ao ano 2000, quando 38% desse grupo eram analfabetos. O grupo mais jovem, dos 15 aos 19 anos, tem o menor índice (1,5%).
Mulheres que sabem ler e escrever são 93,5%, um ponto percentual acima dos homens. Elas são minoria apenas na faixa etária dos 65 anos ou mais, quando os homens alfabetizados chegam a 79,9%, contra 79,6% delas. A maior diferença registrada entre os gêneros é para o grupo de 45 a 54 anos, com 2,7 pontos percentuais a mais de alfabetização para o público feminino.
Municípios menores, com população entre 10.001 e 20.000 habitantes, têm a maior taxa média de analfabetismo: 13,6%, percentual pelo menos quatro vezes superior ao dos municípios com mais de 500 mil habitantes (3,2%), o que, de alguma maneira, reflete o poderio econômico das cidades e suas populações.
As piores taxas de analfabetismo foram registradas na Região Nordeste (14,2%), que tem vários municípios com percentuais acima de 30% — caso de Floresta do Piauí (PI), com 34,7%. Mas o pior índice municipal do país está mesmo é no Norte, em Alto Alegre (RR), que somou 36,8%. Na contramão, está a Região Sul, onde a alfabetização alcança 96,6% da população. Em São João do Oeste (SC), não chega a 1% o percentual de habitantes que não sabem ler e escrever.
As discrepâncias de raça/cor e socioeconômicas também afetam a alfabetização. Enquanto entre as pessoas de raça branca e amarela os índices de analfabetismo são de 4,3% e 2,5%, respectivamente, as de raça preta e parda amargam percentuais mais do que duas vezes maiores: 10,1% e 8,8%. Entre os indígenas, são 16,1%, ou seja, quase quatro vezes mais do que entre brancos.
Na comparação entre 2010 e 2022, a diferença percentual entre brancos e pretos sofreu queda de 8,5 para 5,8 pontos percentuais, e de 7,1 para 4,3 pontos entre brancos e pardos.
Segundo a diretora executiva do Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (Cedra), Cristina Lopes, há várias razões para essa desigualdade, e a primeira delas é o racismo institucional, que de uma forma geral “trata pior pretos e pardos do que os brancos em qualquer nível socioeconômico”.
— Também é importante mencionar as próprias discrepâncias socioeconômicas entre esses grupos. No que diz respeito à trajetória escolar, os alunos negros apresentam mais atraso do que os alunos brancos, seja por reprovação ou abandono. E a escola não tem como compensar todos esses efeitos. Um dado que ilustra bem essa desigualdade é a distorção idade/série, que é um atraso de pelo menos dois anos em relação à idade/série adequada. Essa distorção é maior entre os alunos negros do que entre os alunos brancos — afirma Cristina.
A diretora do Cedra lembra que no passado o Estado proibiu as pessoas negras de estudar. Além disso, afirma, “promoveu a imigração europeia com o intuito de branquear o Brasil”.
— Então, o Estado brasileiro, que não foi neutro no passado, precisa agora ser proativo em políticas de promoção de equidade racial. É importante aperfeiçoar a política de cotas, investir mais na educação, desde a básica até o ensino superior. A desigualdade racial não é um fato isolado, não está só no setor público, ela é um problema de todas as áreas da vida social brasileira. As instituições e organizações da sociedade precisam se envolver no combate ao racismo nas várias dimensões em que ele se apresenta, considerando que o racismo é estrutural na sociedade brasileira — conclui Cristina.
Já existe uma compreensão no setor privado, mas é preciso expandir essa compreensão, mostrando que o racismo atrasa o desenvolvimento brasileiro, diz a especialista. A luta contra a desigualdade racial precisa ser uma questão de toda a sociedade brasileira, combinada também com a promoção da equidade de gênero, o que, sustenta Cristina, possibilitará promover o desenvolvimento socioeconômico brasileiro.
Especialista em políticas educacionais, o professor José Marcelino de Rezende Pinto, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP em Ribeirão Preto, afirma que os números do analfabetismo do Brasil só não são mais graves “porque os velhinhos vão morrendo”, e é entre as pessoas idosas que estão os piores índices. Mas ter analfabetos na idade escolar é um grande nó.
O problema todo é estrutural, segundo o professor da USP. Pinto enfatiza que ainda não se conseguiu incorporar no sistema educacional uma política para realmente enfrentar o analfabetismo. Para o acadêmico, a EJA — por muito tempo conhecida como supletivo — é tradada como “uma educação pobre para pobre, onde qualquer pessoa pode dar aula, pode alfabetizar”.
Além de defender concursos específicos para professores da educação de jovens e adultos — a maioria hoje atua na área regular e acaba complementando horas nessa modalidade —, Pinto afirma que a atual política de financiamento da EJA é um grande complicador. Para ele, seria preciso apostar em uma política de fomento, com valores por aluno além do previsto no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
O professor destaca que, na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2024, a subfunção EJA tem R$ 287 milhões, dez vezes mais do que o empenhado em 2022, mas ainda muito longe do que seria necessário.
— É 0,2% do orçamento da função Educação. A gente vê um início de movimento, mas ainda é dinheiro “de pinga”. Quem banca a educação básica são os estados e municípios, que estão no limite. Com a municipalização da EJA, está sobrando para os mais pobres — afirma Pinto.
A meta 10 do atual PNE, que estipula a oferta mínima de 25% das matrículas da EJA, nos ensinos fundamental e médio, na forma integrada à educação profissional é, para o professor da USP, a mais estratégica, por não ser “alfabetizar por alfabetizar”, e sim fazer com que a educação tenha sentido na vida do cidadão.
— Não é a pessoa aprender a escrever o nome. A alfabetização tem que entrar na vida daquela pessoa, seja como conscientização política, seja para o mundo do trabalho. E essa meta, que é 25% (quer dizer, já é baixa), está em apenas 1,6%. Piorou ao longo do tempo — alerta o professor.
A professora Soraya Pacífico complementa que a escola tradicional, que se baseia no discurso autoritário, em que o aluno apenas repete, acaba por excluir a muitos. O letramento, diz a professora, se dá tanto pela oralidade quanto pela escrita. Uma criança que saiba produzir textos por meio do oral, quando chega no ensino fundamental só precisa aprender a escrever, enquanto uma que só reproduz o que está na lousa, “desenhando letras”, não sabe o que está escrevendo, “porque elas não leem, apenas copiam”.
— Infelizmente, a escola ainda funciona como um aparelho ideológico de Estado. A escola não sabe olhar para todos, não sabe lidar com a diversidade. Diversidade, nem estou falando só de gênero, de necessidades especiais, e tudo isso que ela não está mesmo preparada para a inclusão. Mas a necessidade de diversidade de interpretações, diversidade de sujeitos que vão produzir esses ou outros sentidos. Ela [a escola] se engessa e quer engessar os alunos. E hoje eu acho que os alunos não cabem nessa forma tão rígida como nós coubemos — diz a pedagoga, que há 40 anos acompanha o ambiente escolar.
As falhas do letramento, ressalta a professora da USP, fazem com que hoje muitas pessoas se vejam reféns da desinformação e das fake news, o que mostra que é preciso muito mais do que apenas alfabetizar.
— As pessoas realmente acreditam cegamente no que elas recebem, não conseguem virar a chave e refletir. Muitas vezes, nem o próprio professor tem segurança de deixar as crianças interpretarem sentidos diferentes. Essa criança, esse jovem, esse adulto crescem achando o quê? “Tudo que está escrito, é daquele jeito. Não vou duvidar, está escrito” — alerta a professora.
Da mesma forma, em 2014 foram 3,65 milhões de matrículas, enquanto no ano passado os matriculados na EJA eram 2,58 milhões, uma diferença a menor de 29,11%.
Para a secretária Zara Figueiredo, o trabalho do colegiado do Senado que vai acompanhar a educação de jovens e adultos “é vital” e trará uma contribuição imensa à EJA. Ela lembra que superar o analfabetismo e melhorar os anos de estudo das pessoas são metas em uma política multifacetada.
— A EJA nasce subfinanciada. Desde que o Fundeb foi criado, a primeira vez na história que a EJA teve um aumento de recurso de 0.8 para 1.0 foi no final do ano passado — ressalta a secretária do MEC.
Isso quer dizer que um aluno da EJA representava 80% do valor de um aluno do ensino fundamental I — o que não fazia sentido, segundo Zara, já que essa modalidade precisa de muito mais recursos por abranger turmas maiores, que precisam de pedagogia diferenciada, currículo diferenciado e que, para melhorar a qualidade, precisa acontecer integrada ao ensino técnico.
— Há poucos incentivos para as redes fazerem um movimento para qualificar a EJA. Há poucos incentivos em políticas públicas. Não há monitoramento eficaz como no ensino fundamental I, na alfabetização de crianças. Todos esses elementos mostram para nós que, de fato, historicamente a EJA vem sendo assumida como uma política de segunda classe. E também há pouco incentivo para que o estudante venha se alfabetizar na rede ou fora da rede.
Por isso, a ação não deve ser restrita à oferta, mas deve atingir também a demanda. A evasão, por exemplo, é alta. Entre 2018 e 2023, houve perda de 27% de matrículas da EJA.
Com públicos diferentes, as lógicas de oferta (tempo, formação, método) também precisam ser diferenciadas. Não há como alfabetizar um jovem que trabalha o dia inteiro da mesma forma daquele que só estuda, segundo a secretária.
Assim, uma das apostas do governo federal é o chamado Pacto Nacional pela Superação do Analfabetismo e Qualificação da Educação de Jovens e Adultos, que passará a oferecer, pela primeira vez, a formação continuada para 10 mil professores, de forma que passem a ter mais elementos para trabalhar com esse público diferenciado.
Dados elaborados pelo Cedra apontam que as escolas predominantemente negras (com mais de 60% dos alunos declarados negros) têm 33% dos professores com formação adequada, ou seja, aqueles que lecionam na área em que se formaram. Já nas escolas predominantemente brancas, essa proporção era o dobro em 2019.
Outra ação governamental é atuar com o Programa Dinheiro Direto na Escola (PPDE-EJA) para um conjunto de redes com mais necessidades, que deverá beneficiar 792 mil alunos, a partir de salas de acolhimento para atender, por exemplo, filhos de adolescentes que muitas vezes abandonam a escola por não terem com quem deixar seus pequenos.
Recentemente também foi anunciado o Programa Pé-de-Meia EJA, que deverá atender, em um primeiro momento, 135 mil matrículas no EJA ensino médio, em um incentivo financeiro para que os estudantes não abandonem as salas de aula. Outra iniciativa agregada ao pacto é o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Pro-Jovem), que acolhe alunos em áreas urbanas e rurais. Para o programa, deverão ser ofertadas até o fim da gestão 100 mil vagas, sendo 28 mil já este ano.
A proposta do MEC é, até 2027, reduzir em 50% o atual número de analfabetos entre 15 e 39 anos. A pasta pretende ainda diminuir em pelo menos 20% o analfabetismo entre pessoas com 40 anos ou mais.
— Esse é o público mais difícil. Eles não são alfabetizados na escola, mas por meio de alfabetização popular — afirma a secretária Zara.
Para quem não concluiu a educação básica, o governo trabalha com projeção de aumento de 22% nas matrículas por ano na EJA.
— Essa é uma grande ambição nossa. Porque aí chegaríamos em 2028 com um índice de recuo satisfatório. E para a EJA integrada à educação profissional, a nossa meta é que a gente consiga chegar em 2028 com 12,5% de oferta.
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Fonte: Agência Senado