Síndrome de Munchausen: entenda sobre a doença
Estadão - Após diversas polêmicas relacionadas a atuação, Jade Picon enfrentará um novo desafio na novela Travessia, da Rede Globo. A personagem Chiara, interpretada pela atriz, será diagnosticada com síndrome de Munchausen ou distúrbio factoide, uma condição em que a pessoa se machuca e finge ter sintomas para ser internada em um hospital.
A síndrome foi descrita em 1951 pelo médico inglês Richard Asher e recebeu o nome em homenagem ao Barão de Munchausen, alemão cujas peripécias fantasiosas viraram livro. Os pacientes com esse transtorno costumam forjar sintomas de doenças para serem cuidados pela equipe médica de um hospital. “Inconscientemente, ela (pessoa com a síndrome) busca estar sob cuidados médicos, aquele carinho quase maternal que tem uma pessoa doente quando é atendida”, resume a médica Vanessa Citero, coordenadora do Serviço de Saúde Mental do Hospital Universitário da Unifesp e professora do Departamento de Psiquiatria da universidade.
A especialista conta que atende, em média, de dois a três pacientes por ano com essa condição apenas no Hospital Universitário. O diagnóstico, entretanto, é complicado: ninguém acredita que o paciente está se machucando de propósito para ficar mais tempo no centro de saúde. Um dos casos que mais deixou sua equipe chocada foi a de uma mulher jovem que pedia para ser entubada pois acreditava que teria algo grave no pulmão, mesmo que os exames dessem negativo.
“O caso era muito estranho, pois a bactéria que encontrávamos era presente nas fezes. Então desconfiamos que ela infectava o acesso venoso com fezes quando não estávamos olhando, para fazer a bactéria chegar ao sangue”, relembra. Essa paciente acabou morrendo pouco depois e não foi possível confirmar a suspeita.
Qual a diferença entre síndrome de Munchausen e hipocondria?
A principal característica da distorção factoide é a de que a pessoa provoca os sintomas com intenção de ficar doente. O cenário é diferente de uma pessoa hipocondríaca, por exemplo, que tem medo de estar doente. O psiquiatra Antônio Freire,coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria do Hospital Juliano Moreira, em Salvador, ressalta que a ansiedade ligada à hipocondria é a de fazer exames para ter certeza que não há algo de errado com o corpo, enquanto a síndrome de Munchausen pode estar ligada à mitomania - transtorno daqueles que mentem compulsoriamente.
“O hipocondríaco não possui sintomas, ele se sente mal ao saber que pode estar doente. Ele não produz a doença ou um quadro de fingimento de doença”, esclarece o professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Faculdade Bahiana de Medicina e Saúde Pública (Bahiana).
O último paciente com esse transtorno atendido pelo médico, há cerca de três meses, foi uma mulher de aproximadamente 50 anos. Ela apresentava um quadro depressivo e, à medida em que chegava o momento de receber alta médica, novos sintomas apareceram, como tremores e esgotamento físico, que mal a permitiam sair da cama.
“A gente ficou com receio de que ela pudesse ter tido alguma isquemia cerebral, mesmo sabendo que a chance era pequena. Então pedimos avaliação do setor de neurologia, pedimos ressonância, diversos exames, até entender que ela estava em busca de atenção e não queria ir pra casa”, conta. Outra prática comum nos portadores desta síndrome atendidos por ele é a de se cortar durante exames de urina, para que o exame detecte algum tipo de sangramento interno.
Em outro caso, atendido por Citero, o paciente apresentava um quadro de hipoglicemia. A condição era visualizada nos exames, mas não havia nenhum problema relacionado aos rins ou outros órgãos internos que atestassem essa condição, bem como qualquer dificuldade em comer ou ingerir alimentos. Após certo tempo de internação, a equipe encontrou ampolas de insulina jogadas no lixo do banheiro - ele injetava em si mesmo para provocar o quadro da doença.
Como é feito o diagnóstico da síndrome de Munchausen?
Os dois psiquiatras concordam que o diagnóstico costuma ser muito demorado. Afinal, seja qual for a queixa, o grupo médico tem como obrigação analisar cada sintoma e toda possível doença que pode estar causando a condição antes de acreditar que tudo não se passa de uma narrativa inventada.
“O paciente sempre vai tentar levar uma história que se aproxime de alguma doença, então, por exemplo, ele vai ler, vai estudar sobre o caso que quer aparentar ter”, reforça Citero. É comum, por exemplo, que as pessoas com distúrbio factoide sejam da área de saúde e entendam o comportamento do corpo humano.
Outro ponto apontado por especialistas é que pessoas com esse distúrbio gostam de debater com o corpo médico, sugerindo exames e procedimentos relevantes para a situação. Freire ressalta ainda que percebe outro padrão nos pacientes: é comum que eles se apresentem em emergências nos fins de semana e feriados, quando os profissionais que atendem tendem a ser menos experientes e podem demorar mais a perceber o transtorno.
Além disso, esse grupo de pessoas reage bem ao fato de precisar ficar mais tempo internado, tomando soro ou outro medicamento na veia sem ter nenhum tipo de receio. Assim, acabam se tornando amigos dos funcionários do centro médico. “Então quando alguém levanta a possibilidade ‘eu acho que fulana tem Munchausen’, o grupo reclama. Dizem ‘mas como você pode pensar isso de uma pessoa tão querida, que nos ajuda tanto?’, acrescenta a enfermeira Simone Algeri, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) e coordenadora do curso de capacitação para enfrentamento da violência familiar do Hospital das Clínicas de Porto Alegre.
O que é Munchausen por procuração?
A profissional cuida há 19 anos de outro viés da doença: a Munchausen by proxy ou por procuração. Neste caso, o paciente não inflige danos a si mesmo, mas ao próprio filho. A intenção por trás do crime é a mesma, a de conseguir atenção para si, porém não sob o aspecto de ‘doente incurável’, mas de ‘mãe salvadora’.
Há relatos de casos nos quais outros parentes praticam essa ação, mas a maioria dos casos conhecidos se trata de mãe agressora. Um dos mais famosos é o da americana Gypsy Rose Blanchard, que passou a vida inteira acreditando que tinha uma grave doença por causa de sua mãe, Dee Dee. Ao descobrir a verdade ,após anos sem conseguir andar ou falar direito, ela acabou matando sua genitora.
A história é retratada na série The Act, da Star+, e no documentário Mamãe Morta e Querida, da HBO Max. A síndrome também é retratada na série de ficção Objetos Cortantes, baseada no livro de mesmo nome, da autora Gillian Flynn, e na autobiografia Eu Não Sou Doente, escrita por Julie Gregory, baseada em experiências vividas dentro de casa.
“Acredito que a gente tenha mais casos de mulheres porque são elas que cuidam das crianças, é a mulher que traz para algum hospital. No caso de um abusador sexual, por exemplo, ele não traz a criança ao hospital. E essa pessoa (com Munchausen) traz”, opina Algeri.
Um dos casos mais emblemáticos citados pela professora é o de uma criança que apresentava sangue na urina, sem que a paciente apresentasse qualquer deficiência na bexiga. Depois de um tempo, foi percebido que a mãe colocava anilina vermelha, um corante usado em bolos, em todas as bebidas da filha. Em outra situação de violência que atendeu, a mãe asfixiava a criança com o travesseiro e, em seguida, acionava a equipe médica para entubá-la com ventilação mecânica. Algumas genitoras diagnosticadas no local já haviam perdido um filho, por outras doenças, o que faz a profissional reforçar a necessidade de capacitação de profissionais para diagnóstico rápido.
Qual o tratamento para a síndrome de Munchausen?
No caso do transtorno factício causado a terceiros, a solução é mais simples, embora desafiante: é preciso retirar a vítima menor de idade dos cuidados do agressor. A enfermeira destaca que por diversas vezes é preciso acionar o Conselho Tutelar e órgãos de Justiça. “O que a gente sempre tenta antes é a ‘família ampliada’: uma avó, tia, o pai. Porém, na minha experiência, vejo que a maioria das mulheres nesta situação é sozinha, sem apoio”, detalha Algeri.
Porém, há casos de mães com rede de apoio que sofrem com o transtorno. A assistente social Myriam Fonte Marques, coordenadora do programa de proteção à criança do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e colega de trabalho de Algeri, percebe as mães com síndrome de Munchausen aparentam ser mães carinhosas e cuidadosas, sempre preocupadas com o bem-estar dos filhos.
“Há cerca de cinco anos recebemos um casal legalmente constituído, de classe média, com três filhos. Só com o tempo percebemos que a mãe maltratava todos eles, trocando para o filho mais novo assim que nascia mais um. Os parentes dela desconfiavam, incluindo o pai das crianças, mas eles se sentiam mal já em pensar que isso poderia estar acontecendo”, recorda. Depois de um processo judicial, a mulher perdeu a guarda dos filhos e passou a vê-los apenas sob supervisão.
Outro ponto importante é que, diferente dos outros pais, não costumam se incomodar com procedimentos invasivos na criança, a exemplo de retirar sangue. “O caso mais clássico é o da criança com convulsões. Ela fica internada aqui, nenhum profissional vê isso acontecendo, mas a mãe garante que tem convulsões”, aponta. Em casos de suspeita forte de Munchausen, o corpo médico pode solicitar ver as câmeras do quarto, caso haja, para comprovar o transtorno.
Quando a vítima inflige danos a si mesma, o problema é mais difícil de resolver. Ao ser confrontado com um diagnóstico de Munchausen, o paciente costuma deixar de fingir a doença e pedir para receber alta imediatamente, visto que desapareceram os sintomas. Porém, a melhora é apenas uma saída rápida para se internar em um outro hospital.
Pode ser recomendada a internação do paciente em um hospital psiquiátrico, caso ele corra risco de vida. Em casos tidos como mais leves, um grupo de trabalho multidisciplinar tenta fazer com que a pessoa se sinta acolhida em outras áreas de vida e em locais diferentes de hospitais.
Quais os riscos para quem tem síndrome de Munchausen?
A questão de machucar, entretanto, seja a si mesmo ou ao outro, não faz parte de um plano para conseguir pensão por invalidez ou atestado no trabalho, por exemplo, mas sim de ser cuidado. “É importante ressaltar que a pessoa faz isso conscientemente, com propósito, mas não por maldade”, destaca Citero.
O maior risco dos pacientes dessa síndrome é, sem querer, acabar indo a óbito. Por isso, caso você perceba que algum amigo ou familiar está apresentando um quadro similar, é preciso uma avaliação com um médico responsável o mais rápido possível.
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Fonte: Estadão
Imagem: Reprodução Estadão