Pandemia fez crescer o número de postagens com emoções negativas nas redes
A pandemia da covid-19 gerou um grande prejuízo à saúde mental da população, e um dos principais parâmetros para mostrar esse efeito negativo é o aumento de transtornos como a ansiedade e a depressão. Para um grupo de cientistas americanos, as redes sociais também podem ajudar a compreender os efeitos psicológicos de grandes crises, como a atual. Eles chegaram à conclusão ao avaliar mais de 600 milhões de postagens feitas durante a fase inicial da pandemia, em cerca de 100 países. A análise dos conteúdos mostra um aumento de sentimentos negativos em usuários de todos os lugares — com taxa maior do que as registradas em episódios críticos anteriores, como em casos de desastres naturais. Detalhes do trabalho foram publicados na revista Nature Human Behaviour.
Os autores do artigo relatam que, para avaliar variações emocionais com base em publicações on-line, foi preciso levar em consideração dados de pesquisas semelhantes conduzidas antes da pandemia. Essas análises mostraram que, normalmente, as pessoas expressam, nas mídias sociais, as emoções mais otimistas nos fins de semana e as mais negativas na segunda-feira. A crise sanitária, porém, induziu uma reviravolta negativa no humor 4,7 vezes maior do que a diferença tradicional no teor das postagens. "Os primeiros meses da pandemia foram, globalmente, como uma segunda-feira muito, muito ruim para os usuários de mídia social", ilustra, em comunicado, Siqi Zheng, professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos EUA, e um dos autores do trabalho. "A conclusão aqui é que a pandemia causou um enorme custo emocional, quatro a cinco vezes a variação de sentimento observada nas publicações de uma semana normal", completa.
Foram analisadas 654 milhões de mensagens postadas no Twitter, todas identificadas por localização, por 10,56 milhões de indivíduos entre 1º de janeiro e 31 de maio de 2020. Para avaliar o conteúdo e classificá-lo, os especialistas usaram um software de processamento de linguagem, o mesmo utilizado em análises de episódios de grande impacto emocional, como os efeitos da poluição, de eventos climáticos extremos e desastres naturais. A pandemia causou as mudanças mais significativas no humor, considerando essas outras circunstâncias. "A reação negativa à pandemia foi de três a quatro vezes maior do que a resposta às temperaturas extremas. O choque é maior do que o causado em dias em que há um furacão em uma região", relata Yichun Fan, também autor do estudo.
Isolamento
As maiores quedas em sentimentos positivos ocorreram em Austrália, Espanha, Reino Unido e Colômbia, e as menores, em Bahrein, Botsuana, Grécia, Omã e Tunísia. Também chamou a atenção da equipe o fato de as políticas de bloqueio temporário (isolamento social) não terem alterado tanto o teor das mensagens publicadas. "Você não pode esperar que os bloqueios tenham o mesmo efeito em todos os países", explica Fan. "Mas descobrimos que as postagens feitas nesse período se concentraram, em grande parte, em uma reação positiva (à decisão), mesmo que muito pequena. Definitivamente, não é o impacto extremamente negativo que nós esperávamos."
Siqi Zheng arrisca uma justificativa para o fenômeno. "Por um lado, as políticas de bloqueio podem fazer as pessoas se sentirem seguras e não tão assustadas. Por outro lado, no isolamento, em que você não pode ter atividades sociais, há mais estresse emocional. Talvez, o impacto das políticas de reclusão ocorra em duas direções e, por isso, não vimos alterações bruscas."
Novos olhares
A equipe acredita que esse tipo de análise pode enriquecer os estudos sobre o comportamento humano. "A abordagem tradicional é usar pesquisas feitas com questionários para medir o bem-estar ou a felicidade. Mas esses estudos têm uma amostra menor e são feitos com menos frequência. Nossa abordagem se diferencia porque é uma medida de análise feita em tempo real", justifica Zheng. Ele enfatiza, porém, que os usuários de mídia social não representam a população em geral, o que faz com que essa estratégia deva ser "usada junto com — e não no lugar de — pesquisas tradicionais."
Fernando Machado, psicólogo do Hospital Anchieta de Brasília, também chama a atenção para a vantagem de a abordagem proposta pela equipe do MIT permitir a análise de um conjunto significativo de dados. "Um dos destaques do estudo é que foi analisado um número muito alto de mensagens de alterações de humor, que, em geral, devem estar relacionadas a problemas comportamentais diversos, como depressão e pânico, além de fobias, que também se tornaram frequentes nestes últimos anos", diz. "Eu vejo com bons olhos esse tipo de análise de conteúdo virtual. Há um grande número de informações que precisam ser avaliadas com cuidado, porque nos dizem alguma coisa. Precisamos ficar de olho nesses dados."
Machado lembra que a internet também tem ajudado profissionais de saúde e pacientes no enfrentamento à pandemia. "Percebemos, pelas taxas oficiais, que problemas como ansiedade e depressão subiram muito, e o número de pessoas que buscou o atendimento on-line, durante o isolamento social, cresceu também. Todas essas mensagens avaliadas reforçam esse cenário, principalmente em relação ao luto, com indivíduos que expressaram seu sentimento de perda, seja de um amigo, seja de um familiar, em um período marcado por muitas mortes", diz.
Ferramenta promissora
"Essa técnica de análise de mensagens virtuais foi usada em estudos da área psiquiátrica, com pacientes que sofriam com esquizofrenia. Nesse caso, monitorando as postagens, os médicos conseguiam dizer se a pessoa entraria em surto ou não. O mesmo aconteceu também em casos de depressão, para acompanhar ideias suicidas. É um tipo de pesquisa muito válida, ainda mais se pensarmos que, quando as pessoas se comunicam na internet, temos o anonimato, que pode ajudar a ver resultados mais reais em se tratando de pesquisas científicas comportamentais. Assim como nesse estudo da pandemia, temos informações importantes, coletadas em um número de analisados extremamente alto, algo muito superior aos métodos de entrevista, e informações que podem ser bem aproveitadas na área médica".