OAB diz que PL do aborto é flagrantemente inconstitucional e atroz

por Antônio Luiz Moreira Bezerra publicado 18/06/2024 07h15, última modificação 17/06/2024 17h54
O parecer técnico-jurídico da comissão foi apresentado e votado nesta segunda-feira (17/6) pelos 81 conselheiros federais.

O Conselho Pleno do CFOAB aprovou, por aclamação, pela inconstitucionalidade do Projeto de Lei (PL) 1904/2024, que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro. O parecer técnico-jurídico da comissão criada pela Portaria 223/2024 foi apresentado e votado nesta segunda-feira (17/6) pelos 81 conselheiros federais. 

 

O presidente nacional da OAB, Beto Simonetti, destacou que a decisão da Ordem não levou em conta debates sobre preceitos religiosos ou ideológicos, e que o parecer é exclusivamente técnico, do ponto de vista jurídico. O texto será encaminhado à Câmara dos Deputados. "A OAB entregará esse parecer, aprovado por seu plenário, como uma contribuição à Câmara dos Deputados, instituição na qual confiamos para apreciar e decidir sobre este e qualquer outro assunto. Tive a oportunidade, ainda hoje, de agradecer pessoalmente ao presidente da Câmara, Arthur Lira, pela disponibilidade com que ele sempre ouve e recebe as contribuições da advocacia nacional. Sob sua condução, a decisão da Câmara certamente será tomada de modo consistente", disse. 

 

Beto Simonetti ainda anunciou que o presidente da Câmara, Arthur Lira, está disposto ao diálogo. "Reconhecendo o papel fundamental que a Ordem exerce na sociedade brasileira como líder da sociedade civil, ele está preparado para receber o resultado da votação e construir uma solução para esse PL, ouvindo a OAB", afirmou. Ele reiterou que "essa é a importância do diálogo honesto e direto que a Ordem tem mantido com os poderes ao longo do tempo", disse Simonetti.

 

O parecer também pede pelo arquivamento da proposta e comunicação do documento às presidências da Câmara e do Senado Federal. “A criminalização pretendida configura gravíssima violação aos direitos humanos de mulheres e meninas duramente conquistados ao longo da história, atentando flagrantemente contra a valores do estado democrático de direito e violando preceitos preconizados pela Constituição da República de 1988 e pelos Tratados e Convenções internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Estado brasileiro”, destaca o relatório. 

 

Teor técnico-jurídico


Assinam o parecer as conselheiras federais Silvia Virginia de Souza, presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH); Ana Cláudia Pirajá Bandeira, presidente da Comissão Especial de Direito da Saúde; Aurilene Uchôa de Brito,  vice-presidente da Comissão Especial de Estudo do Direito Penal; Katianne Wirna Rodrigues Cruz Aragão, ouvidora-adjunta; Helsínquia Albuquerque dos Santos, presidente da Comissão Especial de Direito Processual Penal; e a presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada, Cristiane Damasceno.

 

Ao apresentar o documento, junto com as demais integrantes da comissão, todas mulheres, Silvia Souza explicou que foi feita uma análise técnico-jurídica, abordando o direito à saúde, o Direito Penal e o Direito Internacional dos direitos humanos, levando em consideração os aspectos constitucionais, penais e criminológicos do texto. Desta forma, o posicionamento do grupo não se confunde com posicionamento contra ou a favor da descriminalização do aborto.

 

“Tendo em vista que a proposta padece de inconvencionalidade, inconstitucionalidade e ilegalidade, manifestamo-nos pelo total rechaço e repúdio ao referido projeto de lei, pugnando pelo seu arquivamento, bem como a qualquer proposta legislativa que limite a norma penal permissiva vigente, haja vista que a criminalização pretendida configura gravíssima violação aos direitos humanos de mulheres e meninas duramente conquistados ao longo da história, atentando flagrantemente contra a valores do Estado Democrático de Direito e violando preceitos preconizados pela Constituição da República de 1988 e pelos tratados e convenções internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro”, declarou a presidente da comissão.

 

A comissão ainda sugere que, caso a proposta legislativa avance, culminando na criação de nova lei, que o tema seja submetido ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de ação de controle de constitucionalidade, a fim de reparar possíveis danos aos direitos de meninas e mulheres.

 

Inconstitucionalidade


A análise feita pela comissão, submetida ao Plenário do CFOAB, concluiu que o PL 1904/2024 é inconstitucional. Ao equiparar o aborto a homicídio, mesmo que dentro das exceções legais, o texto afronta princípios constitucionais fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade familiar e o melhor interesse da criança. Além disso, a proposta viola os direitos das meninas e mulheres, impondo-lhes ônus desproporcional e desumano.

 

A comissão entende que a mulher não pode ser culpada pelo aborto, nos casos já guarnecidos em lei, pois isso denotaria expressivo retrocesso. A solução para os desafios associados ao aborto não reside na criminalização da mulher e sim na obrigação do Estado e demais instituições de protegê-la contra os crimes de estupro e assédio. É preciso implementar políticas públicas robustas que garantam educação, segurança, atendimento médico adequado e medidas preventivas. Atualmente, o Brasil enfrenta uma realidade alarmante: em mais de 80% dos casos as vítimas são crianças indefesas, violentadas e obrigadas a recorrer ao aborto.

 

Segundo as integrantes da comissão, é imperativo, portanto, promover o planejamento familiar e assegurar que hospitais públicos estejam preparados para receber e acolher essas mulheres. “Existe uma disparidade imensa de acesso ao planejamento familiar no mundo e no Brasil não é diferente. Falta de informação e educação sexual, utilização de métodos contraceptivos pouco efetivos como as tradicionais tabelinhas, dificuldade de acesso a métodos contraceptivos de longa duração, falta de acesso aos programas de planejamento familiar pelo SUS, levam ao aumento de gestações indesejadas e aumento da violência contra a mulher, jovem, adolescente e criança”, destaca o parecer.

 

“O texto grosseiro e desconexo da realidade expresso no Projeto de Lei 1904/2024, que tem por escopo a equiparação do aborto de gestação acima de 22 anos ao homicídio, denota o mais completo distanciamento de seus propositores às fissuras sociais do Brasil, além de simplesmente ignorar aspectos psicológicos; particularidades orgânicas, inclusive, acerca da fisiologia corporal da menor vítima de estupro; da saúde clínica da mulher que corre risco de vida em prosseguir com a gestação e da saúde mental das mulheres que carregam no ventre um anincéfalo. Todo o avanço histórico consagrado através de anos e anos de pleitos, postulações e manifestações populares e femininas para a implementação da perspectiva de gênero na aplicação dos princípios constitucionais é suplantado por uma linguagem punitiva, depreciativa, despida de qualquer empatia e humanidade, cruel e, indubitavelmente, inconstitucional”, destaca a comissão em trecho do parecer.

 

“É imperativo para a Ordem dos Advogados do Brasil o seu compromisso com a defesa da Constituição, da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e da justiça social, conforme preceitua o art. 44, inciso I da nossa Lei Federal 8.906/1994 (Estatuto da OAB). Ademais, entendeu o legislador constituinte ser o/a advogado/a indispensável para administração da justiça (art. 133 da CF), dada sua importância no desenvolvimento e formação do Brasil, eis, portanto, a relevância e as premissas que sustentam a necessária manifestação da OAB diante do projeto de lei que propõe a criminalização de meninas e mulheres em caso de aborto realizado após a 22º semana, nas hipóteses já permitidas em lei”, diz o parecer.

 

Foram realizados “75 mil estupros por ano, com 58 mil desses estupros contra meninas de até 13 anos, 56% negras. O retrato das vítimas deste projeto de lei, se aprovado, são meninas pobres e negras que têm voz aqui, sim, nesse plenário. Eu vim desse lugar”, disse Silvia de Souza durante a sessão do Conselho da OAB.

 

O parecer foi feito a pedido do presidente da Ordem, Beto Simonetti, que destacou que o documento aprovado não é uma mera opinião da instituição. “É uma posição da Ordem dos Advogados do Brasil, forte, firme, serena e responsável. E, a partir dele, nós continuaremos lutando no Congresso Nacional, através de diálogo, e bancando e patrocinando a nossa posição”, afirmou.

 

O documento aprovado pelo Conselho da OAB pede que o projeto de lei que equipara o aborto ao homicídio seja arquivado ou, caso aprovado, que o tema seja levado ao Supremo Tribunal Federal (STF).

 

Inconstitucional

 

O parecer afirma que o PL 1.904/24 viola a Constituição por não proteger e garantir o direito à saúde, principalmente às mulheres vítimas de estupro. Segundo o parecer, a pena imposta pelo projeto à mulher vítima de estupro, por ser maior que a pena imposta hoje ao estuprador, também viola o princípio da proporcionalidade que deve reger o direito penal.

 

“Atribuir à vítima de estupro pena maior que do seu estuprador, não se coaduna com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade da proposição legislativa, além de tratamento desumano e discriminatório para com as vítimas de estupro”, diz o documento.

 

De acordo com o projeto, a mulher poderá ter uma pena que chega a 20 anos, enquanto o estuprador pode pegar, no máximo, 10 anos de cadeia.

 

O documento aprovado hoje pela OAB destaca ainda que o texto “grosseiro e desconexo da realidade” não considera as dificuldades que as mulheres e meninas vítimas de estupro têm para acessar o aborto legal.  

 

“O PL não se preocupou com a possibilidade de uma descoberta tardia da gravidez, fenômeno comumente percebido nos lugares mais interioranos dos Estados brasileiros, ou ainda, com a desídia do Estado na assistência médica em tempo hábil”, argumentou.

 

Segundo a OAB, as dificuldades impostas pela realidade justificam a interrupção da gravidez acima da 22ª semana.

 

“No Brasil, o abortamento seguro está restrito a poucos estabelecimentos e concentrada em grandes centros urbanos. A dificuldade em reconhecer os sinais da gravidez entre as crianças, ao desconhecimento sobre as previsões legais do aborto, à descoberta de diagnósticos de malformações que geralmente são realizados após primeira metade da gravidez, bem como à imposição de barreiras pelo próprio sistema de saúde (objeção de consciência, exigência de boletim de ocorrência ou autorização judicial, dentre outros) constituem as principais razões para a procura pelo aborto após a 20ª semana de gravidez”, explica o parecer.

 

Direito Penal

 

O parecer afirma que o direito penal deve ser usado como último recurso, já que ele é regido pelo princípio da intervenção mínima e da reserva legal. “O direito penal torna-se ilegítimo quando a serviço do clamor social, pois sua utilização deve ser como ultima ratio, e não como primeira e única opção”, diz o documento.

 

Outro argumento utilizado é o de que o PL viola o princípio da humanidade das penas.

 

“A imposição de pena de homicídio às vítimas de estupro é capaz de ostentar características de penas cruéis e infamantes, o que seria um retrocesso e uma violação ao princípio da humanidade das penas”, argumentou.

 

Laicidade e vício formal

 

Segundo a OAB, o PL também feriria o princípio do Estado Laico, que sustenta que convicções de determinada religião não podem ser impostas ao conjunto da sociedade.

 

“A política criminal proposta no PL em análise, no seu aspecto sociológico aparenta estar imbuída de convicções teístas, ao passo que se afastar da realidade de meninas e mulheres brasileiras estupradas e engravidadas por seus algozes e, portanto, não encontra abrigo no princípio da laicidade do Estado”, diz.

 

A OAB também chamou atenção para o fato de a urgência do projeto de lei ter sido aprovado sem discussão com a sociedade.

 

“Notado vício formal, vez que não foi apregoado pela Mesa [da Câmara] podendo ser votado diretamente no Plenário, sem que antes fosse submetido à análise das comissões de mérito da Câmara, sendo, ainda, suplanta possibilidade de participação da sociedade civil e de Instituições Públicas nos debates e discussões acerca desta temática”, completou.

 

Defesa do PL

 

De autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), o texto conta com a assinatura de 32 parlamentares. Ao justificar o projeto, o deputado Sóstenes sustentou que “como o Código Penal não estabelece limites máximos de idade gestacional para a realização da interrupção da gestação, o aborto poderia ser praticado em qualquer idade gestacional, mesmo quando o nascituro já seja viável”.

 

Leia o parecer na íntegra

 

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Fonte: OAB Nacional / Agência Brasil - Imagem: OAB

Edição: Site TV Assembleia