Crianças com síndrome da zika têm risco de morte 22 vezes maior, diz estudo
Crianças nascidas com a síndrome congênita da zika (SCZ), como é chamado o conjunto de sequelas provocadas pela infecção durante a gestação, entre elas a microcefalia, têm 22 vezes mais riscos de morrer entre um e três anos de vida do que crianças sem o problema.
A conclusão é de um estudo inédito publicado nesta quarta (23) no periódico The New England Journal of Medicine, com dados da Plataforma de Vigilância de Longo Prazo para a Zika e suas Consequências, coordenada pelo Cidacs (Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde) da Fiocruz da Bahia.
O trabalho analisou dados de 11,48 milhões de nascidos vivos no Brasil entre 2015 e 2018, período que concentrou o maior número de casos de infeções pelo vírus da zika, em especial entre 2015 e 2016. Desse total, foram identificadas 3.308 crianças com a síndrome congênita, das quais 398 morreram.
Os resultados mostram que o risco de morte cresce conforme a idade. Até 28 dias após o nascimento, por exemplo, a possibilidade de a criança morrer é sete vezes maior em relação à dos bebês sem a síndrome. Entre um e três anos de idade, o risco é 22 vezes maior.
Esse é o primeiro estudo a investigar a mortalidade por SCZ nos 36 meses de vida. A síndrome envolve várias disfunções decorrentes do efeito do vírus da zika no sistema nervoso central dos bebês. As crianças podem ter anomalias estruturais, como a microcefalia, funcionais, como a dificuldade de engolir, e clínicas, como a epilepsia.
Segundo Enny Paixão, autora principal do estudo e pesquisadora do Cidacs/Fiocruz, a alta taxa de mortalidade dessas crianças pode ser atribuída tanto às anomalias graves causadas pelo vírus da zika na vida intrauterina quanto aos problemas de assistência.
"É preciso ter protocolos clínicos de acompanhamento muito bem estabelecidos para melhorar a qualidade de vida e a sobrevivência dessas crianças", diz ela que também é professora assistente da London School of Higiene and Tropical Medicine.
O estudo mostrou entre as causas de morte estão problemas que podem ser manejados com acompanhamento adequado, como as doenças infecciosas e desnutrição proteico-calórica por dificuldade de deglutição. Ou seja, essas crianças não conseguem ingerir a quantidade de alimentos necessários.
Muitas também têm epilepsia de difícil controle. Uma sugestão, segundo Paixão, seria reduzir o intervalo de tempo entre uma consulta e outra para observar a resposta às medicações e mudá-las se necessário. Mas, segundo as entidades que dão assistência às famílias de crianças com a síndrome, há muita dificuldade de acesso a especialistas.
A médica paraibana Adriana Melo, a primeira a associar o vírus da zika aos casos de microcefalia, em 2015, explica que as crianças com SCZ também podem morrer por pneumonia decorrente de broncoaspiração (quando o alimento desce pela via respiratória).
Ela afirma muitos dos riscos podem ser reduzidos com terapias adequadas, oferecidas em serviços com grupos multidisciplinares, e redes de apoio às famílias dessas crianças.
Desde o início da pandemia, Melo dirige dois projetos em Campina Grande (PB) que acompanham cerca de cem famílias de crianças com a síndrome, o Ipesq, um instituto de pesquisa, e a ONG Amor sem Dimensões.
"Temos um grupo de WhatsApp, e essas mães estão muito bem orientadas. Elas sabem, por exemplo, avaliar a saturação e sintomas de risco dessas crianças. Quando uma está em risco, há uma mobilização imediata", conta.
As redes sociais também têm sido usadas como forma de pressionar o poder público por uma assistência adequada. Melo diz que, recentemente, duas das crianças que acompanha estavam com infecção respiratória e precisavam de internação na UTI.
"Uma dessas crianças passou o dia toda saturando menos de 50% e não tinha vaga. Só conseguimos à noite. Mas aí não tinha ambulância do Samu para transportá-la até o hospital. Depois de muita luta, conseguimos. Ou seja, sem essa rede de apoio, muitas já teriam morrido."
Segundo Germana Soares, dirigente da ONG União de Mães de Anjo, que acompanha cerca de 400 famílias de crianças com a síndrome congênita da zika, mesmo nos casos em que as sequelas são muito graves, há sempre o que fazer para promover a qualidade de vida das crianças.
"A gente vê algumas crianças do mesmo nível [de gravidade da síndrome], de famílias de maior poder aquisitivo, fazendo terapias e sendo acompanhadas nos serviços particulares e percebe que elas conseguem evoluir mais, dentro das suas limitações, claro", diz ela, mãe de Guilherme, 6, que nasceu com a síndrome.
Soares afirma que a assistência a essas crianças piorou muito quando a zika deixou de ser uma emergência em saúde. "Pararam de vir verbas, medicamentos, as promessas de construção de centros de reabilitação não foram cumpridas. As doações diminuíram muito. A gente caiu na invisibilidade."
Ela conta que as crianças estão crescendo, hoje com idade de cinco, seis, sete anos, e passaram a ter outras necessidades. "As mães já não conseguem carregá-las no colo. Ao mesmo tempo, não conseguem cadeiras de roda e órteses. Há locais em que a fila de reabilitação demora três anos. Continua tudo muito difícil."
Durante a pandemia, a situação das crianças com a síndrome piorou ainda mais. Muitos locais de reabilitação foram fechados, o que fez com que algumas sofressem atrofia dos membros. "Como muitas não andam, a única atividade física que têm é na terapia", diz Soares.
Segundo Melo, de Campina Grande, no auge da pandemia, quando o distanciamento social foi necessário, o grupo deu orientações virtuais às mães. Os fisioterapeutas orientavam sobre a postura, a fonoaudióloga ensinava a forma correta para reduzir risco da broncoaspiraração. "Mas é claro que algumas crianças sofreram regressões."
Para ela, ainda que as crianças carreguem sequelas graves, a pior delas continua sendo a social. "Na hora que não tem uma vaga na UTI, não consegue fazer uma cirurgia, colocar uma sonda [para alimentação], é desesperador. Por isso, o grupo de apoio é fundamental. Quando morre uma criança, é um luto coletivo."
A médica explica que há um contrassenso na maioria dos serviços brasileiros de reabilitação. "Eles dão alta para essas crianças porque elas não vão andar. É como se só pudessem ter terapias se essas crianças fossem andar. Mas, sem terapia, elas pioram a escoliose, atrofiam, perdem função respiratória."
Embora a maior parte dos casos de SCZ tenha acontecido entre 2015 e 2016, auge da epidemia de zika, os novos registros não cessaram. Só em 2020, 1.007 novos casos da síndrome foram notificados pelo Ministério da Saúde, dos quais 35 (3,5%) foram confirmados e 597 (59,3%) permaneciam em investigação, segundo último boletim oficial.
Para Enny Paixão, é preciso que os gestores públicos invistam em prevenção primária, ou seja, eliminação dos focos do mosquito Aedes aegypty, que transmite a zika, a distribuição de repelentes para evitar a picada, por último, lembrar as gestantes que a infecção pode ser transmitida por via sexual e, por isso, o uso da camisinha também é muito importante durante a gravidez.
"Uma vez que a criança tenha a síndrome, é claro que é possível desenvolver protocolos para minimizar os óbitos, mas ainda assim muitas coisas não serão evitadas porque são manifestações graves. Por isso, prevenir a infecção é fundamental."
A proliferação do Aedes aegypti, também transmissor da dengue, da chikungunya e da febre amarela, é favorecida em locais com saneamento deficiente. Segundo o Painel Saneamento Brasil, plataforma do Instituto Trata Brasil que apresenta os principais indicadores socioeconômicos e ambientais do país, quase 35 milhões de brasileiros vivem sem acesso ao atendimento de água, enquanto 47,6% da população não tem acesso à coleta de esgoto, o que representa quase 100 milhões de pessoas.