Como lidar com o vício de crianças e adolescentes em games

por Antônio Luiz Moreira Bezerra publicado 25/04/2023 07h00, última modificação 24/04/2023 14h37
Especialista alerta para o perigo da adição em jogos, condição que pode levar crianças e adolescentes a prejuízos psicológicos, físicos e comportamentais

Theo passa o tempo todo na frente do computador. Viciado em games, quando é afastado dos jogos demonstra um comportamento extremamente agressivo. Em alguns capítulos da semana passada, ele acabou incendiando a casa, por acidente, após uma crise de “abstinência”.

 

A história do personagem vivido por Ricardo Silva na novela Travessia está dando o que falar. Os conflitos com a família são constantes, e os pais, Monteiro e Laís, interpretados por Ailton Graça e Indira Nascimento, já perceberam a gravidade da situação. Ele sofre de uma condição que agora é considerada uma doença de fato e, como o personagem, afeta principalmente crianças e adolescentes, ainda mais com a importância que hoje tem o universo digital.

 

A nova Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, a CID-11, teve mudanças e passou a incluir o distúrbio de games como um problema de saúde mental. O vício em jogos eletrônicos entrou para a lista sob a nomenclatura “Transtorno de Jogos Eletrônicos” (Gaming disorder), dados os prejuízos físicos, psicológicos e inter-relacionais causados ao indivíduo.

 

Larissa Figueiredo Gomes, psicóloga, especialista em terapia cognitivo-comportamental, explica que não existe uma causa conhecida ou específica para o vício em games, e, sim, uma somatória de fatores, como predisposição genética e influências ambientais e culturais.

 

Alguns trabalhos, ela cita, apontam que pessoas impulsivas, com distorções do autoconceito, da autoeficácia e autoaceitação, com dificuldade de regulação emocional, são mais propensas a desenvolver o vício. "O vício em games pode levar ao abandono ou afastamento de atividades laborais e educacionais, interferência nas relações familiares e afetivas, isolamento social, além de inatividade física, problemas posturais e obesidade", comenta.

 

Ainda assim, é possível que uma pessoa que joga todos os dias não seja viciada. "Tecnicamente, não há nada de mal em jogar como lazer. O problema se instala quando a linha tênue entre prazer e vício é cruzada e acarreta prejuízos", pondera Larissa.

 

No caso específico da adolescência, é uma época de transformações biológicas intensas, que ocorrem para que o organismo tenha oportunidade de desenvolver novos repertórios comportamentais, necessários para a vida adulta, associados à autonomia, indica a especialista. "Se os estímulos nessa fase da vida privilegiarem emoções positivas intensas de curto prazo, como ocorre nos games, esse comportamento passará a ser emitido com mais frequência e intensidade, podendo se tornar um vício.”

 

Os games existem há anos e estão cada vez mais modernos. Com a alta do mercado nesse setor, continua Larissa, muitos gamers se profissionalizaram e ganham ótimos salários, grandes premiações e, inclusive, se tornaram celebridades. As transmissões de campeonatos entraram na programação dos importantes canais de televisão e streamings e até levam multidões a casas de shows e estádios de futebol. "O estímulo ao consumo é cada vez maior. Além disso, o isolamento social imposto pela pandemia aumentou significativamente o número de jovens que jogam de forma excessiva", diz.

 

SINAIS

 

Os principais sinais de que algo não vai bem são: jogar mais tempo que o razoável, com prejuízo de outras atividades e de interação social, problemas no rendimento escolar ou profissional, diminuição no tempo de sono, aumento dos conflitos familiares e irritação no período afastado do jogo (indício de abstinência).

 

O primeiro passo para o enfrentamento do desequilíbrio é reconhecer o problema. "O jogo está afetando atividades básicas, como comer, dormir, socializar ou ir à escola? Se a resposta for sim, então, pode ser um problema e é hora de buscar ajuda de um profissional de saúde mental. Uma vez diagnosticado que se ultrapassou o limite entre a diversão e a compulsão, é preciso começar um tratamento adequado", indica Larissa.

 

Atualmente, a recomendação é de uma abordagem interdisciplinar que se fundamenta principalmente na terapia cognitivo-comportamental (TCC), esclarece a psicóloga. Como nesses casos o paciente é fortemente impelido a jogar, investindo cada vez mais tempo nisso, o ideal é que se inicie o tratamento ensinando-o um pouco sobre a psicopatologia de que sofre. "Em seguida, é importante conhecer o histórico desse paciente como indivíduo, bem como os aspectos que o relacionam ao vício, com a finalidade de possibilitar intervenções que utilizam técnicas de auxílio, para que o próprio paciente vá se libertando do vício", ensina.

 

Segundo Larissa, um diagnóstico não é feito para rotular ninguém, e sim para nortear tratamentos possíveis. "A classificação como doença não anula o reconhecimento de que videogames podem educar e fornecer formas inestimáveis para a compreensão de temas sérios e diversos. Eles podem impactar a ciência do mundo real, desenvolver as habilidades cognitivas, de resolução de problemas, o pensamento crítico, a empatia e a resiliência. Não pretendemos classificar todos os gamers com algum transtorno e sim alertar a população para essa possibilidade que, infelizmente, tem se mostrado cada vez maior", aponta. "Muitas pessoas enxergam o diagnóstico apenas como rótulo, como estigma, como problema. Acredito que ter um diagnóstico, feito por profissionais competentes, pode ser a escada para o paciente sair do fundo do poço", reforça.

 

TRATAMENTO

 

O objetivo do diagnóstico, dessa forma, é auxiliar o profissional na condução adequada do tratamento, para oferecer o que há de melhor em termos de evidência científica. "O diagnóstico não é mocinho nem vilão. Tudo depende da forma como será utilizado. Se empregado corretamente, pode ser um grande aliado. Também devemos batalhar para que não existam estigmas com outros vícios diferentes. São questões de saúde que carecem de tratamento, não de julgamento. Tratar de forma estigmatizada afasta as pessoas do tratamento", reitera.

 

Segundo a CID-11, cita Larissa, o transtorno do jogo parece ser mais prevalente entre adolescentes e adultos jovens do sexo masculino com idade entre 12 e 20 anos. Os dados disponíveis sugerem que os adultos têm taxas de prevalência mais baixas. Entre os adolescentes, o transtorno tem sido associado a níveis elevados de problemas de externalização (por exemplo, comportamento antissocial, controle da raiva) e internalização (como sofrimento emocional e baixa autoestima).

 

"Adolescentes com distúrbio de jogo podem estar sob maior risco de insucesso acadêmico, fracasso/abandono escolar e problemas psicossociais e de sono. Embora com menos frequência diagnosticadas, as meninas que atendem aos requisitos de diagnóstico podem estar em maior risco de desenvolver problemas emocionais ou comportamentais."

 

Para evitar que as coisas se compliquem, tanto escola, quanto família, precisam focar na prevenção, orienta Larissa. Com isso, continua a psicóloga, é preciso estimular a psicoeducação em relação ao transtorno, encorajar um processo de automonitoramento sobre o uso exacerbado da tecnologia, além de promover mudanças comportamentais e ensinar os jovens a lidar com o estresse e adotar outras atividades prazerosas.

 

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Fonte: Estado de Minas

Imagem: Pixabay

Edição: Site TV Assembleia